Dos orixás às lavadeiras, a música de resistência mantém vivos os nossos ancestrais

Inaicyra Falcão arrepia quem ouve seu canto em iorubá em homenagem aos orixás do Candomblé.
A cantora lírica baiana pertence à família real de Ketu, antigo reino na África onde hoje fica Benin, foi criada em comunidades de terreiro e cresceu ouvindo os cânticos sagrados em idiomas africanos.
Filha de Mestre Didi e neta da iyalorixá Mãe Senhora, ela é descendente de Marcelina da Silva, escrava que depois de alforriada foi para a costa africana e voltou à Bahia, onde ajudou a fundar uma das três casas do Candomblé Ketu, na Barroquinha, em Salvador.
“Estou relacionada com uma ancestralidade que vem passando de geração em geração, e que existe ainda hoje porque houve uma resistência dessa comunidade”, diz Inaicyra, que é pesquisadora das tradições afrobrasileiras e trabalha com a recriação da música sacra negra.
“Eu me identifico com essa ancestralidade, não só com a prática religiosa, mas com a dimensão dessa cultura”, diz Inaycira, que entre 1982 e 1988 viveu na Nigéria com o povo iorubá e defendeu sua dissertação de mestrado na Universidade de Ibadan.
“Muita coisa que aqui dizem que é dos orixás, lá percebemos que está no cotidiano. O acarajé, por exemplo, se come não como comida de santo, mas como alimento de qualquer ser humano, pois o orixá também foi um ser humano e que, por isso, comia acarajé”, continua.
Inaicyra faz da música uma forma de preservar a memória de nossos ancestrais em um processo histórico protagonizado pelas elites brancas e que excluiu as contribuições das matrizes africanas e indígenas para a construção da identidade brasileira.
ASSISTA A TRECHOS DE UM SHOW DE INAICYRA:

Como ela, foi nos terreiros que Giovani Di Ganzá despertou para suas raízes. “A música de terreiro me abriu para conhecer mais da minha história e dos meus ancestrais”, diz Di Ganzá, que mescla música afro e música considerada erudita em composições para filmes e documentários, espetáculos de dança e peças de teatro, como a desenvolvida pelas Clarianas.
“A gente fala das nossas angústias, e fazer isso é uma forma de resistência”, diz Martinha Soares.
Formado por três cantoras (Martinha, Naluana Lima e Naruna Costa), as Clarianas começaram no Espaço Clariô a partir da montagem de um espetáculo teatral sobre mulheres periféricas.
“Fomos buscar referências nas nossas mães e avós, o que trouxe essa ancestralidade para a cena”, complementa Martinha.
O foco do grupo está na investigação da voz da mulher “ancestral” na música popular e
“natural” brasileira, dos cantos caboclos de matriz africana, indígena, nordestina e periférica.
Como resultado, em 2012 elas lançaram o disco “Girandêras” com 15 canções autorais, desde o sertanejo ao samba de roda, do maracatu às ladainhas católicas, dos tambores às cantigas das lavadeiras na beira do rio.
VEJA O CLIPE DE “PEDINTE”, DAS CLARIANAS:

Tanto Inaicyra quanto as Clarianas participam da Massa Revoltante, uma série de atividades promovida pela organização alemã Goethe-Institut em São Paulo, cujo mote é “música de protesto” – o que incluiria esses cantos ancestrais.
Idealizado por Di Ganzá, o grupo Abanã Runsó mistura cultura erudita com popular e de terreiro, mas não faz música de protesto propriamente dita.
“É um grupo que tem uma linha musical e que nasce porque as pessoas envolvidas são engajadas, o contexto em que essa música está inserida. Então, o protesto está em como o grupo se posiciona em relação ao mundo”, nota Hercules Laino, integrante do grupo.
Durante apresentação na sede do Goethe-Institut, o grupo optou por encerrar sua intervenção com instrumentos de percussão ao invés de usar sopros ou cordas – a forma encontrada para contestar o ambiente formal em que estavam inseridos.
“A gente se encontra com outras pessoas que já conhecem nosso trabalho, mas do lado de fora é que estão as pessoas que gostaríamos que ouvissem. Quando a gente tá junto, na verdade estamos apenas alinhando nossas ideias”, diz Hércules. “O protesto não faz sentido se você estiver falando com os seus”.
 

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