Hoje, 28 de junho, é o dia em que se celebra mundialmente o Orgulho LGBTQIA+, uma afirmação da existência de pessoas que estão fora da chamada cisheteronormatividade.
A data faz referência à Revolta de Stonewall, quando em 28 de junho de 1969 integrantes dessa população resistiram a uma ação da polícia de Nova York (EUA). O bar era frequentado por gays, lésbicas, drag queens e travestis. Por lei, a cidade estadunidense obrigava as pessoas a usarem roupas de acordo com seu sexo biológio e bares não podiam vender bebida alcoólica para homossexuais. Naquele dia, o grupo resolveu resistir a mais uma batida policial e iniciou uma série de protestos.
Por tudo que isso gerou, nesta data, muitos veículos jornalísticos já publicaram ou devem publicar reportagens especiais sobre o histórico de lutas do movimento, apontar dados sobre LGBTQIA+fobia, contar histórias de superação… Ao longo do mês, diversas marcas produziram comerciais posicionando-se a favor da diversidade sexual e de gênero. São ações importantes, fruto de muita gente que deu o sangue – literalmente, muitas vezes – para garantir o mais básico direito: o de existir.
São anos, décadas, séculos de luta – se considerarmos toda a era de dominação cristã europeia que, por meio da colonização ao longo dos últimos 500 anos em todo mundo, estabeleceu o homem cis hétero branco como o padrão universal de humanidade.
Como mídia nascida e criada em uma quebrada de São Paulo e voltada a outras pessoas também de quebrada, a Periferia em Movimento tem como objetivo contar histórias de quem está à frente de lutas pela garantia de direitos. Muitas vezes, abordando temas que a mídia comercial e do centro não aborda. Em quase todas ocasiões, com a perspectiva que só quem tá do lado de cá da ponte consegue entender.
Questionar e desconstruir padrões faz parte de nossa função. E dentro de toda a pluralidade existente em territórios periféricos, é importante destacar as pautas levantadas pela comunidade LGBTQIA+, que pautam questões pertinentes a toda a sociedade.
É a partir da vivência e diálogo intenso com quem tá na ponta que a gente vem se reformulando, se adaptando… e por isso, escolhemos o dia de hoje para dar mais um passo importante: a adoção da linguagem neutra e impessoal em nossos conteúdos daqui pra frente.
Você já deve ter visto por aí na internet ou ouvido alguém falar “todes”, “amigues”, “elus”. São variações que buscam atender a essa neutralidade na linguagem. Para além de novos termos, isso também pode ser encontrado dentro das regras gramaticais.
“Quando você diz ‘aquela pessoa é bonita’, você está aplicando a linguagem neutra”, nos explica Alfie Éli Chaves, estudante de Letras na Universidade de Brasília, que fez um encontro formativo sobre isso com a Periferia em Movimento e pessoas parceiras.
De forma resumida, a linguagem neutra tem a intenção principal de evitar o cis sexismo formado durante a história para favorecer o gênero masculino e acolher pessoas cis dissidentes, sendo elas pessoas trans no espectro binário (masculino ou feminino); e pessoas trans no espectro não-binário ou intersexo, que não se sentem representadas pela linguagem oficial que apresenta a dualidade “feminino” e “masculino” como norma. A linguagem neutra não exclui ninguém, muito pelo contrário. Favorece todo mundo!
Isso também simboliza um resgate da ancestralidade, que desde essa colonização sofre diversos apagamentos. Mogli Saura, bixa travesti não-binária integrante da coletiva Travas da Sul (no Grajaú, Extremo Sul de São Paulo), destaca que binariedade é uma imposição ocidental. “Quando olhamos pras perspectivas dos povos da terra, a produção em gênero e sexualidade é muito própria e tem grupos que manifestam isso com grande importância”, conta ela, citando por exemplo povos indígenas de Oaxaca, no México, que indicam outras possibilidades de gênero para além do feminino e masculino.
Como colocado acima, a Periferia em Movimento tem o compromisso de pautar a garantia de direitos a partir de territórios periféricos, trazendo questões de populações que são vulnerabilizadas e se articulam para mudar essa realidade. Direitos fundamentais como à moradia, à saúde, à educação, à alimentação, ao transporte, ao trabalho e a renda sempre foram pautados por aqui. Assim como o combate ao machismo, ao racismo, à LGBTQIA+fobia e às desigualdades sociais.
Em um País marcado por profundas desigualdades e questões estruturais, mergulhado em uma crise autoritária piorada pela pandemia, somos atravessades por tudo isso. E para determinados grupos, a identidade de gênero é questão de vida ou morte.
Em pleno 2021, a população trans ainda pauta o direito a usar banheiro indicado conforme seu gênero ou a retificar o nome em documentos. E para pessoas não binárias, o uso do pronome diz respeito a considerar sua própria existência.
Para começar a falar disso, em 10 de junho de 2021 a Periferia em Movimento fez uma live dentro da série de encontros “Comunicação com cuidado” para debater linguagens opressoras em gênero e sexualidade. A ideia desses encontros é promover práticas de cuidado na comunicação das periferias. Convidamos a psicóloga, pesquisadora e educadora Elânia Francisca e o jornalista, palestrante e criador de conteúdo Thiago Peniche.
“A linguagem tem uma função de vínculo. A linguagem é essa coisa que me enlaça comigo mesma e com as outras pessoas”, aponta a Elânia, que aprendeu a usar linguagem neutra em oficinas com adolescentes de quebrada.
A Elânia, inclusive, gosta e provoca bastante a gente a flexionar a língua portuguesa. Falamos de corpas, projetas, coletivas. Afinal, a língua é um organismo vivo pois é feito pelas pessoas.
Imagina só se continuássemos falando como no século 17! Porventura, vossa mercê conseguiria? Estamos em constante modificação, por influência de movimentos sociais, pela aceleração da internet e mudanças culturais que derivam disso, ao mesmo em que retomamos práticas de povos que foram subalternizados.
Para quem indica que o jornalismo deve seguir as normas da língua portuguesa, lembramos que apontar correções no modo com que a pessoa fala ou escreve configura preconceito linguístico. É equivalente a caçoar de quem fala “pobrema” por não conseguir pronunciar ou não ter acessado a educação formal. Ou mesmo discriminar quem nasceu em outro estado, cidade ou mesmo bairro distinto do seu – sotaques, dialetos, gírias locais estão relacionados a práticas culturais e à própria identidade dessas pessoas.
“A gramática também é usada como instrumento político de opressão”, explica Alfie.
Citamos novamente Peniche, que na transmissão que fizemos reforçou que o “jornalismo produz sentido”. E que sentido estamos produzindo quando falamos de garantia de direitos de seres humanos, mas ignoramos parte desses seres que não se identificam na binariedade “masculino” ou “feminino”? É preciso contemplar a todes. “A constituição assegura o direito de uma vida digna a todes e logo esse direito especifica que toda a pessoa deve ser respeitada”, disse ele.
Estamos em processo constante de aprendizagem. A partir de agora, vamos buscar aplicar a linguagem neutra nos novos conteúdos que forem ao ar – em pronomes, artigos, substantivos e adjetivos, por exemplo. Também vamos procurar usar frases com palavras que já têm essa neutralidade. Vamos indicar também ao nosso público as razões para isso. Saiba mais aqui e aqui.
Veja abaixo alguns exemplos:
Esse movimento que é de dentro pra dentro, mas também de dentro pra fora, não termina aqui. Nos próximos meses, queremos falar sobre (e aplicar) medidas de combate a linguagens opressoras em questões étnicorraciais, que estimulam a xenofobia ou que impedem a acessibilidade de pessoas com alguma deficiência.
O nosso jornalismo está a serviço disso e esperamos que a gente possa pautar outras iniciativas do tipo. Tamo aqui pra construir. Vamos juntes?