Kell Menon (Foto: Camila Lima)

Fotos e reportagem por Camila Lima

Cris Dias beijou na boca pela 1ª vez quando já estava no final do Ensino Médio. Ele passou boa parte da adolescência, tempo de descobertas pra todo mundo, sem essa experiência afetiva. Lembra-se que, na época da escola, homens negros como ele não eram vistos como bonitos. E no caso de Cris, a situação era mais complexa pelo fato de ser “mais nerd”. 

“Isso é uma coisa que a sociedade constrói e é imposto”, diz ele. 

Hoje, aos 24 anos de idade e profissional do design, Cris é resultado de um processo de desconstrução que continua rolando e que permite refazer sua autoestima. Como ele diz, autoestima é se enxergar e olhar para si com aceitação diante do que é posto pelo mundo. 

E nós: quantas vezes paramos para refletir como nossa autoestima foi construída? 

Os eventos de cada fase da vida são de extrema importância nessa construção. As vivências na infância e o contato com suas figuras familiares são pecinhas importantes para formar essa identidade e, para que na adolescência, tenhamos um caminho mais seguro para continuar a construção da própria imagem até a vida adulta.  

Mas como isso fica no contexto da população negra e periférica, que lida com muitas faltas resultantes do racismo estrutural e da necropolítica que mata e deixa morrer? A valorização da beleza exterior não é a solução de todos os problemas, e sim uma possível porta de entrada para se reconectar com suas raízes, elevar a autoestima e se fortalecer para a luta antirracista.

A Periferia em Movimento foi em busca de suas fontes em um ambiente propício para falar sobre isso: no Espaço Boom Box e na Barbearia do Levi, estabelecimentos voltados à beleza negra que ficam no Grajaú, Extremo Sul de São Paulo. Confira a seguir!

Espelho

É na barbearia que trombo Cris. Sentado na cadeira, ele ganha um novo visual pelas mãos do profissional (que também é seu primo), enquanto a repórter faz as perguntas. “Ser homem é uma coisa. Agora, ser homem negro é outra ideia”, aponta. 

Com o clima mais descontraído, tanto Cris quanto Levi levantam mais um ponto importante sobre a autoestima de uma homem negro de quebrada.

“Hoje em dia é legal ser preto, mas antigamente era motivo de zoeira”, diz Cris. “Assumir os cabelos crespos foi um processo também. Eu fui o primeiro na família, me tornei referência e depois o Levi também deixou o cabelo crescer”, conta.

Cris Dias (Foto: Camila Lima)

Cris se espelhou em outros caras e ele próprio se tornou espelho. Atualmente, continua buscando referências, principalmente internacionais, em redes sociais como instagram e pinterest. 

Mas, para chegar ao momento atual, passou e ainda por muita discriminação racial – e isso revela a importância de pessoas negras serem referências em espaços de decisão. Uma situação marcante foi após uma entrevista de emprego para o setor administrativo em uma rede de supermercados. Um dos superiores não queria contratá-lo por conta de seu corte de cabelo, mas outra superiora defendeu Cris. Ela era uma mulher negra e enxergou para além de sua aparência.

Liberdade | Cantor do universo sertanejo, Kell Menon (na foto ao lado), 32, se prepara para um show fazendo tranças enraizadas no Boom Box. Ele atribui a própria autoestima à confiança que desenvolveu ao longo da vida. Natural da Bahia, saiu de casa aos 12 anos por discordar das ordens dos pais. Foi morar com a irmã e, quando conseguiu dinheiro, veio para São Paulo onde encontrou “liberdade”. O visual, que a cada momento está de um jeito, é uma forma que ele encontrou de se expressar e se sentir confiante, mas também de trazer novidade para seu público.

Resgatando a beleza

Enquanto dá um talento no cabelo do primo, o barbeiro Levi Silva relata que também se sentia feio, as meninas não olhavam para ele na época da escola e ele nem gostava de se olhar no espelho. Para Levi, o que pegava era o status. Um cara que impõe respeito, tem grana e mora em um lugar considerado melhor era mais bem visto no colégio. Com o tempo, isso mudou. 

Levi e Kell (Foto: Camila Lima)

“Comecei a gostar do que eu via. Eu amava ir cortar o cabelo. Era o momento que eu mais gostava. Quanto mais eu demorasse naquele ambiente, mais eu aproveitava e me sentia bem. Eu gostava de conversar enquanto cortava o meu cabelo, aproveitava mesmo e, quando terminava, me olhava e me sentia mais bonito. Saí da escola e entendi que para me sentir bem não era só o status”, recorda-se.

Levi chegou a ingressar na faculdade, não se identificou com o curso, largou e fez um curso de barbeiro. Os primeiros cortes foram voluntários, atendendo pessoas em situação de rua. 

“Me sinto bem em devolver a autoestima de todo mundo e ver o meu cliente sair se achando bonito. É uma coisa que nem preciso perguntar para o cliente. Já percebo quando ele se olha no espelho e, quando saem daqui da barbearia, já postam uma foto no instagram”.

Criando referências

Independente da sua situação financeira, a aparência externa acaba se refletindo nos sentimentos e elevando a autoestima. Se para os homens o assunto é mais restrito, a conversa com as mulheres tá mais naturalizada. E o mercado de beleza percebeu e deu o devido valor de poder de consumo de quem tem cabelos crespos.

Angelica Santos (Foto: Camila Lima)

Angélica Santos Silva, hoje com 20 anos, desde cedo teve seus cabelos alisados. A referência tava dentro de casa: sua família, composta por mulheres fortes, que também alisavam os fios. Por isso, a construção da autoestima não foi indolor – especialmente pelo mundo externo, como as chacotas no período escolar. 

Aos 15 anos, ela sentiu a necessidade de entrar em contato com suas raízes e usou das tranças para essa retomada de si. Passou por sua transição capilar conhecendo as diversas formas de tranças, cores e texturas, e pode através do cabelo buscar sua ancestralidade. Com 17, fez seu 1º grande corte para conhecer a textura real de seus cabelos.

Uma 2ª etapa de sua jornada foi através do universo das maquiagens. Angélica, que passou boa parte de sua vida ouvindo para não usar batom forte e de determinadas cores, seguiu como exemplo uma de suas tias, que se olhava muito no espelho e que também amava muito se maquiar. 

“Hoje, não sigo uma única pessoa para ter como modelo. Atualmente, eu pego referências nas ruas, com pessoas que vejo, homens e mulheres parecidos comigo e que têm um estilo legal, um corte de cabelo, os fios parecidos com os meus e assim vou construindo minha autoestima”, diz ela. “As pessoas hoje em dia me comparam muito com a cantora Iza. Eu me sinto uma deusa quando escuto isso”.

Outras feminilidades

Do outro lado da balança, não há o mesmo olhar quando se fala da autoestima de homens e mulheres trans negras. E foi exatamente na maquiagem que Onika Bibiana Gonçalves Soares encontrou uma ferramenta para sobreviver diante da sociedade.

Na lógica do que é ou não interpretado como feminino, ela usava os recursos para esconder seus traços que são lidos pela sociedade como masculinos. 

Onika Bibiana (Foto: Camila Lima)

“A referência do que é masculino ou feminino é muito pautado na branquitude. Cada pessoa trans ou não-binária é um universo e vale entendê-las como indivíduos”, diz a mulher trans de 30 anos, que faz parte da coletiva Travas da Sul.

Em busca de uma “passabilidade”, Onika se via dependente da maquiagem e passava em média 1 hora por dia cobrindo esses aspectos com os tantos artifícios possíveis. Isso mudou.

“Hoje eu tento cuidar mais de mim e não me importar com a opinião externa e da referência de masculinidade que as pessoas têm. Estou em um processo de cuidar do meu corpo para que eu me sinta confortável: uso menos maquiagem e faço tratamento a laser para diminuir os pelos do rosto para que eu acorde e possa lavar o rosto e sair bem assim”, diz ela, que também quer cuidar de algumas cicatrizes de acne.

“Quero lavar o rosto e sair de casa, ainda que eu saiba que a sociedade cisgênero sempre vai usar marcadores do que é feminilidade e tentar me ler e me tratar no gênero masculino”, ressalta.

Quando tratamos da autoestima e não queremos ficar na camada superficial do assunto, é importante abordar maquiagem, cabelo e vestimenta sabendo que no dia a dia da quebrada isso não é o fato dominante.

Por isso, apesar de contarmos histórias individuais, é importante destacar que cada trabalho feito por coletivos negros em prol do resgate da ancestralidade vale só para a atual geração mas visando também que as gerações futuras tenham uma autoestima consolidada para enfrentar o sistema racista e curar feridas abertas. 

Como diz Onika, “um corpo é um corpo, e ele precisa de carinho, de cuidados”.

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