Com cesta básica nas costas, periféricos apontam para um “novo normal” com direitos garantidos

Reportagem por Thiago Borges. Foto em destaque: ação do Grajaú Faz Assim na ocupação por moradia Porto Velho. Infográfico: Camila Ribeiro

A notificação aparece no computador. Em uma mensagem enviada à página Grajaú Faz Assim, no facebook, uma pessoa pede por uma doação de cesta básica. A situação tem sido recorrente nos últimos meses, com a pandemia de coronavírus e a consequente crise econômica e social. A fome tem pressa.

Do outro lado da tela, o professor Marcelo Sena tenta resolver o problema. Nos últimos meses, a articulação da qual ele faz parte com outras lideranças comunitárias, coletivos socioculturais, organizações locais, trabalhadores da saúde, educação e assistência social, conseguiu angariar doações com empresas e por vaquinhas na internet. Com isso, a rede Grajaú Faz Assim distribuiu kits de alimento e itens de higiene para mais de 10 mil famílias no Extremo Sul de São Paulo.

É muita coisa, mas não é o suficiente.

“A ação solidária foi e é importante, mas não substitui o direto de todos terem garantias de sobrevivência”, aponta Marcelo.

Ele reforça o que outras pessoas também têm visto ao atuarem na linha de frente de combate ao coronavírus nas quebradas: as desigualdades históricas foram escancaradas pela pandemia, o poder público se mantém distante e é a tática “nós por nós” que tem feito a diferença.

O “pós” desejado

Se a classe média fala em “novo normal” ou volta a uma normalidade sem abraços e com mais autoconhecimento, nas quebradas a busca é por um “novo normal” com direitos garantidos. Ainda que pareça distante, regressar ao pré-pandemia seria retornar a um cenário de violações e escassez de políticas públicas.

“A necessidade da gente ter que organizar uma campanha de forma voluntária, nos expondo à covid-19, já demonstra a ausência do Estado pois esse seria o seu papel”, observa Camilla Lima, professora e coordenadora da mobilização em prol da Vila Fundão, comunidade aonde ela mora e que fica no Capão Redondo, zona Sul de São Paulo. Cerca de 600 famílias locais estão sendo assistidas durante o período de distanciamento social e estão recebendo a quarta cesta básica do Instituto Fundão.

Mobilização da Agência Solano Trindade (foto: divulgação)

A arrecadação envolve parceiros e outras iniciativas da região, como o Coletivo Ifé, o Sarau do Binho e a Agência Solano Trindade, sediada no Campo Limpo. Desde março, a organização conseguiu mobilizar e entregar 8 mil cestas básicas em 182 bairros diferentes de São Paulo e região metropolitana, no litoral paulista e na cidade do Rio de Janeiro.

“A gente conseguiu aprofundar uma crise existente na sociedade. Quando falamos pra ficar em casa, qual é essa casa? Aonde ela tá localizada? Tem água?”, questiona Alex Barcellos, que coordena as ações da Agência Solano Trindade. Segundo ele, vivem em média de 4 a 5 pessoas por residência atendida pela campanha, mas há casos em que até 8 pessoas moram juntas.

“O [poeta] Solano Trindade [que dá nome à Agência] sempre falava da fome, só que agora vemos muito mais gente pedindo cesta básica. Enquanto isso, tem um monte de restaurante fechado que poderia fornecer comida pra muita gente e sendo financiado pelo Estado”

Alex Barcellos, da Agência Solano Trindade: ele aponta o problema e já indica o que poderia ser uma medida emergencial

Se o poder público tem feito pouco, a organização opera: com apoio de lideranças, também entregou mais de 8 mil marmitas em 6 bairros do Campo Limpo (principalmente Jardim Maria Sampaio, Jardim Macedônia e Jardim Paris). A agência também distribuiu mais de 5 mil máscaras, 15 mil livros e fez parceria com agricultores para entregar frutas, legumes e verduras.

Em outra margem de São Paulo, na zona Norte, a Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias já distribuiu 2 mil cestas básicas. Formado pela O grupo, também criou um mapa (veja abaixo) com mais de 70 pontos de coleta e distribuição de alimentos. Um aplicativo para celular facilita encontrar cada local. Baixe aqui.

“O objetivo central é aproximar o doador do polo que fica mais próximo ou no mesmo território em que ele está inserido. Essa interlocução entre a iniciativa comunitária com o doador fortalece o comunitarismo da quebrada”, explica Jesus dos Santos, um dos articuladores da Rede.

“Foram as organizações periféricas que conseguiram minimizar o sofrimento dessas famílias que não tinham nem o que comer devido à crise sanitária”, continua Jesus. O próximo passo é desenvolver com esses grupos um curso de captação de recursos para que tenham maior autonomia para continuar o atendimento local.

Tudo isso é importante, porém a principal mudança tem que ser estrutural. Para Jesus, a solução passa pela redistribuição do orçamento a partir de indicadores que mostrem onde há maior vulnerabilidade social. Isto é, mais dinheiro investido aonde mais precisa.

“É necessário avançar em uma discussão no que tange à descentralização e regionalização do orçamento público e no aprofundamento do controle social, fazendo com que a participação e a transparência sejam o carro-chefe da gestão e administração pública municipal”, enfatiza.

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Política feita na rua

A cada 50 casas, um presidente de rua para atender as necessidades das famílias, principalmente no apoio à saúde e à alimentação; produção de 10 mil marmitas por dia; contratação de 3 ambulâncias, equipes médicas e formação de 60 bases com 240 brigadistas formados na comunidade.

Com essas e outras 9 frentes de atuação, Paraisópolis passou a ser considerada “modelo de gestão” para outras periferias e favelas Brasil afora – e a metodologia está sendo replicada em outros 26 territórios de 8 estados diferentes.

Com a demora do poder público em agir, a organização comunitária é considerada fundamental para frear o avanço do vírus na região. E para quem tá na linha de frente, só reforça a urgência em atender demandas antigas.

“Poderiam ser elaboradas políticas públicas voltadas para a urbanização e saneamento com condições de moradia e saúde, principalmente”, salienta Givanildo Pereira Bastos, o Giva, um dos responsáveis do Comitê de Favelas em Paraisópolis.

Giva traz ainda outras possibilidades que poderiam ser adotadas: “Identificamos que existem muitos espaços que estão sem uso que poderiam ser utilizados para a formação de pessoas, oferecer empregos, além de aproveitar a oportunidade da organização da comunidade com os presidentes de rua para implantar de forma permanente ações que resolvam problemas da comunidade”.

Camilla (à esq.) em mobilização na Vila Fundão (foto: Roberta Carvalho)

Na Vila Fundão, Camilla percebe os danos do machismo e do racismo realçados com a pandemia: “Levantamos dados importante no território, traçando um perfil dessas famílias e suas necessidades: são mulheres negras, mães, diaristas, que não chegaram no Ensino Médio. São famílias grandes morando em casas pequenas e sobrevivendo com uma renda que não chega a um salário mínimo. Ou seja, a fome, a falta de creche que impossibilita uma mãe de terminar seus estudos, a injusta distribuição de renda, os problemas na saúde pública, na habitação…”.

Já nas calçadas e embaixo de marquises da cidade, são os homens negros com idade média de 40 anos que mais têm sofrido os impactos da crise – eles são maioria entre a população em situação de rua. De acordo com dados da Prefeitura de São Paulo, até 2019 havia quase 25 mil pessoas em situação de rua na cidade. Mais de 85% são do gênero masculino e mais de 70% são não-brancos.

O SP Invisível, que busca dar visibilidade a essas pessoas, montou e distribuiu kits de álcool gel, máscara, água, bolacha, detergente e outros itens para pessoas sem teto. “Mas o que vai funcionar mesmo é o acolhimento, porque no fim da noite o cara vai dormir na rua”, diz Vinicius Lima, fundador da iniciativa.

Junto a outras organizações e coletivos que atuam com entrega de alimentos na rua, redução de danos e da própria população em situação de rua, o SP Invisível articulou um projeto de acolhimento dessas pessoas pelo setor hoteleiro.

O “Na Rua Somos Um” apresentou um ofício à Prefeitura para abrigar 7 mil sem-teto, mas até o momento nenhuma das 75 mil camas em hotéis paulistanos foi disponibilizada. A gestão municipal chegou a lançar um edital para 500 vagas, mas nenhum dos 7 estabelecimentos inscritos foi habilitado.

Para Vinicius, a gestão deveria sair do gabinete e ser feita a partir de quem precisa que o Estado funcione. “Quando a gente olha pra população em situação de rua, e nas periferias também, as políticas tendem a olhar de forma generalizada, sem considerar as características. É lógico que não vai fazer uma política pública pra cada pessoa, mas você pode fazer recortes. Por exemplo: só idosos em situação de rua são 2.500 – e foi uma dificuldade mapear essas pessoas”, explica.

Espaços de poder

Como este ano tem eleições municipais, a pergunta que fica é: pandemia pode ter um impacto na escolha de quem represente as lutas para ocupar a política institucional?

“Vai impactar se conseguirmos identificar quem são essas lideranças e fazer um caldo eleitoral disso, com pessoas mais próximas dessa realidade”, aponta Wellington Amorim. O comunicador periférico de 25 anos mora no Jardim Ângela e foi o pesquisador do Instituto Update responsável por mapear candidaturas oriundas de periferias e favelas.

Segundo Wellington, uma tendência que já era observada para as eleições de 2020 é a de candidaturas negras em geral e de mulheres negras em específico. “Isso vem da semente plantada por Marielle Franco e do que ela representou, mas também é reflexo de anos de debate do movimento negro”, aponta.

Ação da rede Grajaú Faz Assim em aldeia guarani de Parelheiros, Extremo Sul da cidade (foto: divulgação)

De volta ao Grajaú, Marcelo nota o sumiço de parlamentares com mandato vigente ao mesmo tempo em que se preocupa com a chegada dos oportunistas de sempre – aqueles que mandam pendurar faixas agradecendo a si próprios pelo que é obrigação do cargo – à medida em que a votação se aproxima.

Enquanto isso, se o poder ainda está distante e a entrega de cestas básicas não dá conta do recado, a sociedade civil parte dessa compreensão para continuar pressionando quem tem capacidade de fazer as transformações necessárias.

Por isso, nessa quinta-feira (16/07), um grupo de 10 lideranças do qual Marcelo faz parte se reuniu com a Subprefeitura da Capela do Socorro para protocolar uma carta de demandas para o território.

“A retirada de direitos não pode configurar nos dados de exclusão e vulnerabilidade de forma passiva”, conclui o professor.

Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setúbal.

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