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A arte marginal: um perfil de Mauro Neri – Periferia em Movimento
Foto: Aline Rodrigues / Sueli Carneiro

Foto: Aline Rodrigues / Sueli Carneiro

Parecido com muitos outros grafiteiros, ele vem da periferia. Diferente de outros, seu caminho artístico não passou pela pichação. Destaca que apesar de conhecer bem a sua região, Grajaú, extremo sul de São Paulo, até hoje gosta de redescobri-la. Cada vez mais me desperta o interesse em conhecer, desbravar, caminhar por aqui. Ele é Mauro Sergio Neri da Silva, ou apenas Mauro, como ele assina os seus desenhos com uma caligrafia personalizada. Garante ser um homem forte: não me traumatizo com qualquer coisa, diz com propriedade. Ao longo de sua vida, foi testado e provou.
A relação de Mauro com o grafite começou tarde, aos 21 anos, mas suas influências, o artista garante, começaram cedo. “Minha trajetória artística, minha experiência com desenhos vem desde criança”. Nascido em 1981 no Grajaú, sempre gostou de desenhar. Antes, com a companhia da irmã e do irmão; depois seguiu sozinho: os outros dois perderam o gosto pela brincadeira. Sua mãe sempre teve comércio e bastava deixar o filho responsável pela loja que ele logo arranjava algo para fazer, desenhar, claro.

(Foto: Aline Rodrigues / Sueli Carneiro)


Nunca soube jogar futebol, apesar de gostar. Conseguiu se destacar na escola, não por notas boas, mas com a sua arte. Ele assume que nunca foi um bom aluno, depois da terceira série só colou. Em exatas sempre fui uma negação, colei a vida inteira. A calculadora funciona que é uma beleza (risos). Fazia sucesso com seus amigos da escola e da rua de casa. Recebia encomendas de capas de caderno, desenhos animados, super-heróis.
Mas nessa fase não se dava conta de datar suas produções. Meus primeiros desenhos são datados de 1994. A partir daí, montou sua pastinha. Fez alguns cursos que o ajudaram a se desenvolver no ramo. O primeiro foi de serigrafia. Esse contribuiu para que o jovem, acima de tudo, conhecesse a amplitude do universo que ele estava. Eu achava que era o melhor desenhista do mundo. Eu não conhecia ninguém que sabia desenhar melhor do que eu e lá eu peguei mais referência, valoriza Mauro.
Juntamente vieram as aulas de educação artística que o capacitou e inspirou para vender seus trabalhos. Com 15, 16 anos, começou e não parou mais. Na época fazia apenas reprodução de imagens, paisagens, retrato. Aprendeu a usar tinta a óleo. A base para as pinturas eram bastante diferentes dos muros, paredes utilizados hoje. Seus clientes: vizinhos e parentes. O cara que tinha a casinha lá do norte, trazia a foto e eu ampliava. Fui me aperfeiçoando com a prática.
Mas foi crescendo e apesar de morar com os pais e não ter muitas despesas, era de família pobre. Como todo adolescente, queria andar na moda. Para isso, o desenho não tinha um retorno suficiente. Procurou outras coisas. Ainda bem jovem trabalhou na feira, em oficina, como vendedor de revistas, ajudante de pintor, vendedor ambulante nos ônibus. Mas para ele nada é por acaso. Eu vi o quanto isso fez sentido. Esse contato direto com a rua. Ver todas as belezas e as misérias, a poluição, pessoas de rua, os vendedores, a sujeira, destaca inspirado. Vendia na região de Santo Amaro, Largo Treze, Socorro. Observava o jeito das pessoas se vestirem. Enxergava a humildade e o orgulho convivendo no mesmo espaço. Isso o impressionava.
Por falar em motivação, outra preferência do então garoto era o rock e um consagrado show que vinha para o Brasil também o incentivou a trabalhar. Ele soube alguns meses antes que o Pacaembu receberia o famoso Monsters of Rock, show que reúne as melhores bandas, os grandes astros do rock. Eu queria muito ir, eu e minha irmã, que hoje é freira, vestia coturno comigo. Então Mauro somou mais um trabalho temporário, um lava rápido. Depois de receber o dinheiro e ir ao show ainda ficou por um período lá, mas também com outras atividades. Pintou quadros para o dono do estabelecimento.
Depois desse emprego, montou uma estratégia, queria trabalhar por conta. Ficou durante um mês como ajudante de letreiro. Era premeditado. Eu queria sacar como era a técnica e a partir daí abrir o meu próprio negócio, revela o artista.
O comércio de sua mãe virou o seu comércio. Em 1997, abriu o seu ateliê. Adquiriu noção de escala. Como desenhar em uma base maior do que uma tela de quadros. Não demorou muito para começar a escolher os trabalhos que queria fazer. Passou a atender mais pedidos de pintura de muros, escolinhas, creches, por exemplo. Ele não sabia, mas o grafite já estava presente. Toda sua bagagem contribuiu para criar o seu estilo. A pintura em tela, os super-heróis reproduzidos, tudo.
Até ai, eu tinha como arte a capacidade de reproduzir alguma coisa. E foi em uma visita a exposição de Monet, no MASP, que Mauro percebeu que ia mais além. Quando viu Picasso, sua frustração se consolidou: descobri que eu era um mero artesão, um mero copista. Eu me achava um artista, e vi que estava muito longe. Vi Salvador Dali e foi impactante.
Ainda em 1997 teve o primeiro contato com o grafite a partir do trabalho dos irmãos Os Gêmeos. Mas achava que nunca faria igual. Na mesma época, começou a dar aula de artes plásticas no Centro de Promoção Social Bororé, no Jardim Lucélia, bairro onde ainda mora. Nunca imaginou ser professor de nada, mas por indicação de sua professora de filosofia, resolveu arriscar. Lembro que nas primeiras aulas eu tinha umas técnicas… (risos). Ele conta que as crianças gostavam, era autoritário, mas ao mesmo tempo brincalhão e engraçado. Em 2000, o que era previsto como um período curto se estendeu. Substituiu uma professora em licença maternidade. Fez muitas atividades com os jovens. Decorou todo o prédio do Centro com as crianças. Virou oficineiro registrado pela Secretaria da Cultura.
Mauro afirma que não aprendeu nada técnico. A faculdade valeu mais pelos professores, pelos contatos, mantém amizades até hoje. Orgulha-se ao dizer que daquela turma só saiu artistas. Muitos estão expondo pelo mundo inteiro, artistas renomadíssimos. No grupo tinha inclusive dois grafiteiros, Alexandre Orion e Iaco. O Orion, depois de dois anos que não fazia grafite foi grafitar comigo junto com outro grande artista, Nelson Proença, também da sala. Foi o meu primeiro grafite, emociona-se. O marco na vida do artista ocorreu em junho de 2002.
A partir daí foi tudo muito rápido, em dezembro do mesmo ano já deu sua primeira entrevista. O Orion foi convidado e não pôde ir e me indicou elogiando o meu trabalho. E de “acasos” que a carreira do grafiteiro se consolidou.
Conheceu o Niggaz e o Jerry, grafiteiros da região onde morava, já bastante conhecidos no meio. Reconhece que se aproximaram por interesse mútuo, mas destaca que teve espaço para uma grande amizade. Em companhia dos amigos muitas portas se abriram. E eles perceberam o meu jeito diferente de pintar, com pincel. Era diferente, mas ao mesmo tempo sofria preconceito com a nova técnica. Ouvia muito o que você faz não é grafite isso é artes plásticas.
Participou de muitos eventos importantes do grafite. Ao chegar nos locais, Niggaz e Jerry tinham sempre um espaço reservado e Mauro desfrutava de toda a regalia e prestígio. Nessas oportunidades também pintava os que seriam seus primeiros de muitos grafites, com direito a publicação em revistas do segmento. O agora grafiteiro confessa que o Niggaz foi e ainda é um referência para ele, até no jeito, numa postura voraz.
Conta que o amigo queria pintar muito, queria aparecer. Não tinha medo de nada, nem da polícia. Fascinava o jeito que ele pintava com o spray. Era o cara que todo mundo admirava. Mas a amizade dos dois foi interrompida por uma fatalidade: Niggaz morre em 2003. A gente tinha acabado de fazer dois painéis no Beco do Batman, na Vila Madalena, lugar com o metro quadrado mais grafitado de todo o mundo, segundo ele. Eu diria que ele era o meu amigo da vez, bem nessa época o cara ‘dispiroca’ e morre, diz encerrando o assunto.
Com a morte do amigo mergulha fundo no mundo do grafite e destaca que isso teve o seu lado bom e o seu lado ruim. Passou a se preocupar muito com o que os outros grafiteiros estavam produzindo, uma espécie de competição. Hoje isso me incomoda menos. Por exemplo, um museu faz uma exposição e chama uns caras que não tem nada a ver. Mas faz uma ressalva, é mérito deles que tiveram essa articulação, uma coisa que tenho aprendido, mais que ter talento, o que conta é a articulação.

A viagem com Sofia

Em 2004 ainda fazia oficinas, trabalhou em pelo menos sete ONGs. Algumas vezes como voluntário, outras remunerado. E em uma dessas idas para dar aula conheceu Sofia no Centro de Convivência das Irmãs Dorotéias. Voluntária italiana que veio por meio de um programa anual do Centro que recebe jovens da Itália sempre no mês de junho. A partir desse contato eu tive a oportunidade de ir para a Itália.
Sofia foi sua namorada por quatro anos. Conta que viveram uma novela, com romance e drama. Ela veio para o Brasil, mas logo teve que voltar, a gente se separou, ficou aquela saudade, aquela coisa romântica, foram momentos muito bons, muito lindos. Mas, como sempre, o artista deu um jeito. Decidiu que iria para a Itália. O que mais me motivava era o fator emocional que era forte e verdadeiro, mas também a oportunidade de ir trabalhar. Eu sabia que esse dia ia chegar. Não sabia que era para a Itália e muito menos que seria em busca de um amor. Então, em 25 de janeiro de 2005 Mauro viajou com a ajuda da Cooperativa dos Artistas Visuais do Brasil e o Ministério da Cultura. Fez um projeto chamado Ver Itália: tinha muitas páginas, ainda bem que não foi em vão (risos).

Escultura à beira da represa Billings

Escultura à beira da represa Billings (Foto: Aline Rodrigues / Sueli Carneiro)

O intercâmbio estava garantido e Sofia fez seu papel de anfitriã. Ao recepcionar o namorado em seu país já tinha programação para os 26 dias que passaria por lá, ela montou um cronograma de visitas, foi uma das experiências mais incríveis. E assim o relacionamento dos dois era repleto de idas e vindas. Encontros e despedidas. Ele ia para Itália, ficava um tempo, fazia exposições, fazia alguns trabalhos e da mesma forma ela, vinha para o Brasil sempre que podia. Era sempre muito bem recebido pelos amigos dela que conheci no Brasil, muitos deles solicitavam meu trabalho. Em cada cidade que eu ia tinha um lugar para ficar.
Foram cinco viagens para a Itália. Começou com um intervalo de seis meses, depois cinco “até que em uma das idas fiquei um ano lá”. Trabalhou com oficinas para as crianças, os aluninhos das Dorotéias de lá, com deficientes mentais. “Fiz muitos grafites, fui bem destemido, porque você fazer grafites em locais não autorizados por lá é bem pior do que aqui, se te pegam… O pessoal fazia só à noite, coisa rápida”. O grafiteiro, a partir daí, internacional, conheceu outros países, de acordo com ele, clássicos: Paris, Amsterdã, Lisboa, Barcelona. Conheceu o Louvre, viu o Museu do Vaticano, a Capela Sistina, o Coliseu, Veneza.
Estudou na Academia de Belas Artes de Bolonha, mas não concluiu o curso, tinha a barreira da língua. “Eles levavam uns cinco anos, eu calculei que levaria uns dez. Foi legal que eu me distanciei um pouco do ‘mundinho do grafite’, abriu a minha mente para muitas coisas”. Reflete que ao voltar para o Brasil sentia a diferença “enxergar o Brasil, a cidade, o Grajaú de fora, é outra coisa”.
Típico de Mauro, buscava sempre a fusão do financeiro com o prazer da pintura. Antes da sua última viagem a Itália, em 2007, iniciou o Projeto Imargem, incentivado pela Secretaria da Cultura de São Paulo que lançou um concurso de projetos de arte, o vencedor ganharia R$ 30 mil para viabilizar a ação. Seu bairro de origem e os moradores foram os beneficiados. O projeto consista em construir obras de arte com sucatas recolhidas na margem da represa Billings. Ao mesmo tempo algumas das esculturas tinham um apelo sócio-ambiental. Eram pontos de coleta seletiva de lixo. “Não existia nenhuma autorização ou nada formal para ficarem lá, mas também nem existe autorização para pregar nada na beira da represa. Já viu pedir autorização para jogar lixo na represa?”
Para Mauro o projeto ultrapassava os conceitos artísticos, tinha a função de mobilizar as pessoas. “Eu dei esse pontapé inicial da estética, se tiver alguém, algum ambientalista, alguém que queira, ‘chega junto’. Eu posso cuidar do visual e a gente, juntos, cuida de tudo”. Ele fez parceria com um ambientalista, grafiteiros e uma dupla que fazia artes plásticas com sucata. Uma amiga, professora e doutora em educação o ajudou a elaborar o conceito do projeto e montar um catálogo. Chegaram a conclusão de que a ação baseava-se em três eixos: arte, convivência e meio ambiente.
“A arte que nasceu com a gente, a convivência, que só dá para mudar e fazer alguma coisa convivendo em grupos formados por pessoas que sejam daqui e o meio ambiente, que está ligado sim a biodiversidade, a água, vegetação, mas que é também o lugar onde estamos, das construções inacabadas, sem infra-estrutura”, explica.

(Foto: Aline Rodrigues / Sueli Carneiro)

Intervenção (Foto: Aline Rodrigues / Sueli Carneiro)


Mauro sabia que o Imargem não teria o reconhecimento público e não geraria uma mudança efetiva, mas “era uma área crítica que não tem muita visibilidade, mas que é um bom jeito de começar”. Antes de terminar as dez esculturas, a primeira havia sido roubada, as demais exigiam reparações. Ficavam expostas na beira da represa sujeitas a ação do tempo, do ambiente e principalmente das pessoas. “Muitas delas duraram, a última que estava sendo exposta, infelizmente, acabou de ser destruída há pouco tempo.”
Além das obras estava incluso no orçamento a estruturação de oficinas de grafite para crianças e adultos, os chamadosagentes marginais. O nome dado aos participantes das atividades tinha um duplo sentido proposital da palavra marginal: de quem mora nas margens e do ser marginalizado por uma sociedade dita culta. “Das oficinas acho que ficou um pouco, o problema é que não teve uma continuidade, você faz uma atividade por três meses, depois some.”
Foi realizado em 2008 uma segunda edição do Projeto Imargem, com a duração de um ano e uma verba maior. Essa fase ficou nas mãos do irmão de Mauro, Tim, no período em que ele voltou pela última vez para a Itália. Aproveitou a situação para divulgar o Imargem em sua viagem.
“Não era meu grande sonho fazer um projeto coletivo para salvar o planeta, ajudar os meus amigos, não. Mas entendi queno coletivo é que se faz as grandes coisas”, destaca Mauro surpreendido com os caminhos que o levou a concretização do projeto.
O fim de um ciclo
Ao voltar da penúltima viagem para a Itália, em 7 de julho de 2008, Mauro foi vítima, junto com Sofia, de um assalto que resultou em uma pausa em sua carreira. Na ocasião ao tentar negociar com o assaltante Mauro foi atingido por duas balas; perfuraram o pulmão, o fígado e a sua mão direita. Os dois já estavam separados, mas de uma forma mal resolvida, para ele foi a gota d’água.
Já nos hospital, teve medo de morrer, mas foi quando teve a prova que tinha amigos de verdade. Estava em um hospital público e mesmo assim uma amiga conseguiu mobilizar sete médicos a sua disposição. Eles ainda o confortaram garantindo que está no melhor lugar para o tratamento de ferimentos ocasionados por bala.
“Foi isso, em 16 de julho. Não tem nem um ano ainda. Depois eu voltei para a Itália e aí fiquei lá mais três meses, tentando tudo de novo. Aí veio a crise econômica e voltei agora em dezembro. Já deu a Itália!”
O futuro
Atualmente está em um momento de repensar seu rumo artístico. Tem em mente produzir um memorial sobre sua trajetória, ao mesmo tempo sente que é o momento de dar um grande passo na sua carreira. Está terminando mais um projeto ligado ao Imargem, mais duradouro, com mais verba, mais gente e com um impacto maior. “Continuo grafitando, que é o que eu sei fazer, grafitando a cidade inteira, o bairro inteiro. Uma coisa que eu quero é que minha obra se perpetue no tempo, que minha obra seja referência ao longo do tempo, que seja lembrada, que seja reconhecida . É que pra mim é meio junto, fazer uma arte que faça a diferença.”
A periferia é a moldura viva e a inspiração para a criação da arte marginal.

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