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1º de Maio: A Reforma da Previdência e o que é ser trabalhadora – Periferia em Movimento

1º de Maio: A Reforma da Previdência e o que é ser trabalhadora

Por Helena Silvestre, educadora, militante do movimento Luta Popular e editora da Revista Amazonas

Por onde você olhar mulheres caminhando por aí, vai vê-las carregando sacolas. Se forem mães, carregarão três sacolas e duas crianças. A criança mais velha carregará também uma sacola e ela levará suas bolsas, segurando duas crias pela mão.

Nos ônibus lotados, levando sacolas e crianças dormidas nos braços (e quem já carregou criança dormida sabe o quanto pesa), nos trens, metrôs, subindo as escadas, atravessando semáforos e pinguelas que cruzam córregos…

O equilíbrio da vida é muito difícil em meio à adversidade e tem repousada sua reprodução sobre costas femininas.

Me lembro de subir nalgum banco para lavar a louça quando ainda não tinha altura suficiente para a pia. Não que eu ache essa pedagogia de não fazer nada uma alternativa digna; não. Mas é um mundo hipócrita esse que fabrica pias para mulheres que as manuseiam desde pequenas e sequer a visibilidade da altura ganhamos, já que todos sabem mas ninguém pode assumir conhecer essa realidade.

Girlene: voltando para casa após uma viagem de 3h30 para levar a filha na creche (Foto: Matheus Oliveira/Periferia em Movimento)

Amigues da Periferia em Movimento me pediram pra escrever sobre a Reforma da Previdência, com a ideia de conversar um pouco nesse dia 01 de maio, em meio a tanta porrada que o povo vem levando.

Quando falo do povo – diferente dos estudiosos – eu falo de mim mesma, porque ando trabalhando como doida e nem sabia se iria conseguir. Parece que os poderosos aumentaram a velocidade da esteira e a gente tem de correr o dobro pra ficar no mesmo lugar.

A gente trabalha muito e não é pra fazer coisas novas e desejos nossos. A gente tem trabalhado mais só para pagar as contas e continuar vivo e são, e nem sempre ficar são a gente consegue (acho que é isso que chamam “crise”, ou “planos de ajuste”).

As contas aumentaram, o salário não dura 30 dias e qualquer compra no mercado é uma facada no pouco que tem (minhas amigas da Argentina me contaram que por lá a coisa não é diferente1). O governo tá uma merda, só fala absurdos, só planeja maldades e a gente vê tudo, xingando, sem tempo nem de parar pra respirar – quanto mais pra participar da reunião ou da passeata.

Se for mulher…

Se for mulher, como eu, ainda vai ter de lavar roupa, limpar quintal, cozinhar, varrer e passar pano, lavar o banheiro enquanto toma banho, aguar as plantas e retirar o lixo enquanto fala no celular.

Se for negra, indígena ou afroindígena como eu, vai enfiar a faculdade no meio disso tudo, porque não conseguiu estudar na época mais adequada e tá correndo contra o tempo; já que o nosso conhecimento não é reconhecido nesse mundo se não tiver papel; e nesse mundo aqui, papel é um privilégio de certa elite, criada para ser a nossa liderança, real ou intermediária, conservadora ou progressista, mas a gente que quer trabalhar com coisas diferentes não consegue trabalhar sem o papel.

Você vai ter uma família pobre que também tá cortando um dobrado pra sobreviver e que se alegra um pouco quando você aparece. Então, mesmo com tudo, vai colocar aí uma visita rápida pra poder abraçar a sua irmã que está sem emprego, com uma criança pequena e se sentindo muito solitária na maternidade, mesmo tendo um companheiro gente boa ao seu lado.

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Se você for leonina com ascendente em aquário, ou gostar de arte, coisas bonitas e novas; se tiver uns 30 anos e estiver descobrindo maravilhas sobre seu corpo, vai tentar ainda flertar um pouco com pessoas interessantes – que tão escassas, ou que estão sem tempo – e vai escapar de vez em quando pra comer com algum amigo, pra tomar uma cerveja (já que não aguenta muito mais com esse ritmo) ou pra dançar o Coco – nem que seja meia horinha pra lembrar que tem corpo e que é ele que segura todo esse rojão.

Cintia Adorro, mãe do Benjamin (Foto: Thiago Borges / Periferia em Movimento)

Se eu fosse mãe, além de meu próprio corpo, eu estaria nutrindo outros corpos, pra que vida nessa terra não se acabe. Eu atravessaria depressões com esse corpo e sustentaria mudar tudo – inclusive ele – pra girar a roda da vida na terra e não deixá-la estagnar. E mesmo sem ser mãe, eu alimento tanta coisa e tanta vida, além de também atravessar depressões de mudanças radicais.

Alimentar a vida é um trabalho que as mulheres arrastam muito sozinhas. Por isso é um trabalho que não pode ser visto, não pode ser reconhecido, por isso permanece invisível.

Porque se fosse eu calcular o salário que este mundo deve ao meu corpo afroindígena, preto, de mulher esfolada de sacolas pelos becos ou por reuniões tentando planejar liberdade, ele seria muito alto. Porque o salário de todas nós seria muito alto. Porque seria impossível pagá-lo sem dividir toda a riqueza que ocupa o bolso de homens, brancos, colonizadores e machistas.

O capitalismo tem cara e a cara do capitalismo é essa

Mas ele aprendeu a aparecer no corpo de mulheres que se permitem oprimir e explorar outras iguais. Ele aprendeu a aparecer em corpos negros ou indígenas que se permitem oprimir e explorar outres iguais.

No entanto, o capitalismo nunca será capaz de cooptar todos os nossos corpos de mulheres, negras, indígenas ou afroindígenas, porque somos maioria neste país e fazer isso significaria mudar todo um sistema que sobrevive de prender a riqueza que produzimos nas mãos de uns poucos homens, de umas poucas famílias, de umas poucas empresas, de uns poucos países.

Estes corpos não vivem 76 anos, não vivem 83 anos, como dizem os argumentos que defendem que devemos nos aposentar mais tarde porque estamos vivendo mais. Quem está vivendo mais? Nós mulheres temos sido assassinadas ainda jovens pelo feminicídio e pelo machismo, e não estamos vivendo mais. Nós estamos morrendo.

Nós, as mulheres que ficamos, estamos a cuidar e a alimentar a vida desde antes de alcançar a pia e não estamos vivendo mais. Nós estamos adoecendo cedo e também estamos morrendo.

O povo preto, indígena ou afroindígena tem sido assassinado pela violência instituída pelo poder e pelas balas do agronegócio, da especulação, ou dos venenos na comida e na água. Não temos vivido mais, nós temos morrido, de uma só vez ou um pouco a cada dia de cansaço e exploração.

Os corpos de Cidade Tiradentes vivem em média 25 anos menos que os corpos do Alto de Pinheiros2. Mas não é só isso: se trata também de que vida iremos levar se hoje, na região da Sé, as bibliotecas municipais dispõem de 7,92 livros para cada habitante com mais de 18 anos enquanto no Jardim São Luís essa taxa é de 0,001 (sem contar todas as bibliotecas privadas concentradas no Alto de Pinheiros).

O que essa “Reforma” significa na prática?

A Reforma da Previdência significa que mulheres como eu morrerão antes de se aposentar. Significa que viveremos trabalhando ainda mais para suprir a necessidade de familiares adoecidos, idosos ou jovens demais para trabalhar. Significa que a distância entre nós e as mulheres ricas (que se libertam de parte do trabalho jogando-o em nossas costas) vai aumentar. Significa que o abismo entre nós e os homens ricos (que vivem do roubo do trabalho alheio) vai aumentar.

Quando a gente quiser se revoltar contra tudo isso, toda a repressão e violência do estado estará pronta para nos reprimir e tentar nos calar (basta olhar as novas leis, e alguma mais antigas também).

Sairemos às ruas quando faltar água e seremos reprimidas. Sairemos às ruas primeiro para pedir esmolas, e depois quem sabe… Nós iremos viver dormindo nas calçadas e só mesmo o amor dos cachorros e animais – também tão oprimidos e explorados – vai nos acompanhar.

Envelheceremos com medo de dar gastos ou trabalho a nossos filhos e viveremos isoladas com nossas plantas numa cidade em que não cabem as mulheres mais velhas ou tentaremos nos atirar na linha de algum metrô.3

Tem gente que diz que o Brasil é um país justo, igual pra todos. Tem gente que diz que não há diferenças entre mulheres e homens, entre negrxs e brancxs, entre ricos e pobres, entre gente que tem sobrenome e gente que é todo mundo, como eu sou. Tem gente que diz isso sendo do governo, tem gente que diz isso sendo nazista, tem gente que faz isso enquanto diz outra coisa e tem gente que acha que falar sobre isso é o que divide a gente e nos impede de lutar juntes.

Eu não concordo com nenhuma dessas ideias. Mas como mulher, pobre, favelada, afroindígena, trabalhadora, artista, dona de casa, professora e aluna, permacultora, marxista, estudante de astrologia, ecofeminista, de raíz no sertão da Paraíba, me junto à luta contra a Reforma da Previdência.

Não me divido pra isso. Eu vou inteira pra rua, pra panfletagem ou pra conversa no bar com quem quiser entender porque vai nos matar. Isso é ser classe trabalhadora, aqui e agora, fale primeiro o pedaço que quiser. São todos os pedaços que formam a vida que sou e somos. É com todos eles que resistimos e que resistiremos. Nós precisamos nos rebelar e agir.

NOTAS:

1 https://www.revistacrisis.com.ar/notas/la-deuda-es-un-pacto-entre-caballeros?

2 Mapa da desigualdade de 2016

3 O Brasil registrou 11.433 mortes por suicídio em 2016 – em média, um caso a cada 46 minutos, segundo dados apresentados pelo Ministério da Saúde em 20 de setembro de 2018.

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