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Cultura estrangulada – Periferia em Movimento
Mapeamento por Mariana Sousa

Cai uma garoa fina em Parelheiros. A 40 quilômetros do Centro de São Paulo, os termômetros marcam 12ºC numa noite de sábado. O frio parece mais intenso, mas não desanima Jéssica dos Santos Alves, que prepara cachorro quente enquanto adolescentes, jovens e seus familiares vendem milho cozido, bolos, salgados e cartelas de bingo em barracas armadas na praça principal.

Família Unidos pela Dança: grupo faz arraiá para arrecadar fundos e manter ações em Parelheiros


Assim foi o primeiro arraiá da Família Unidos Pela Dança (UPD), que aconteceu no dia 21 de julho com objetivo de arrecadar uma grana para manter o grupo funcionando, com formação em dança e apresentação de espetáculos para a população de Parelheiros. Fundado em novembro de 2013 com a junção de três outros grupos locais, o UPD nunca recebeu dinheiro público e seus integrantes têm que se virar para dar conta das necessidades do dia a dia.
“A cultura tem um papel importante para a população. Com ela conseguimos promover oportunidades, acalentar sonhos e desenvolver corpos e mentes”, aponta Jéssica. “Mas fazer cultura nessa região é o desafio mais difícil que eu já assumi em toda minha vida”, admite ela, que aponta que as políticas públicas de cultura e lazer poderiam não só reduzir índices de violência institucional e estrutural como também permitir que crianças e adolescentes da região sonhem e vivam uma emancipação pessoal.

Confira a vídeorreportagem produzida por Levi Silva, Mariana Rosa e Thiago Borges sobre a ocupação de espaços públicos pela juventude do Extremo Sul, com a realização de pancadões e sound systems:


Enquanto isso, Jéssica acredita que manter o UPD às custas de um esforço pessoal é importante não só para apresentar uma opção como também para denunciar a negligência do Estado. “A única coisa que fazemos para nos manter é olhar a nossa volta e ver o quanto o projeto transformou nossas vidas”, ressalta.
Ela cita as estatísticas para validar o que é perceptível pelos milhares de moradores da região: Parelheiros apresenta o segundo pior índice de desenvolvimento humano entre os 96 distritos de São Paulo e não possui sequer um espaço cultural público, assim como Cidade Ademar e Ermelino Matarazzo. Não por acaso, essa ausência do Estado se dá em uma região que tem o maior percentual de população negra do município (56%) e conta com diversas aldeias guarani na terra indígena Tenondé Porã.
O único CEU existente no distrito não tem um teatro. Em toda a região Extremo Sul, que compreende as Prefeituras Regionais de Capela do Socorro e Parelheiros, o Centro Cultural Grajaú é o único equipamento público administrado diretamente pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC) para uma população de quase 800 mil habitantes.

Veja abaixo a distribuição de equipamentos culturais pela cidade de São Paulo e, especificiamente, no Extremo Sul


Fundadora do Teatro de Rocokóz e participante do Fórum de Cultura de Parelheiros, a agente cultural Cileia Biaggioli lembra que as lutas são muitas e antigas. “O prédio construído desde 2009 para ser a Casa de Cultura de Parelheiros encontra-se ainda ocupado pelo Conselho Tutelar, apesar de estar sendo finalmente reformado para ser exercer sua função”, explica. Além disso, ela observa que o diálogo com o poder público local é sempre difícil e desgastante, com poucas conquistas e uma compreensão irrisória da importância da cultura. Embora a Constituição Federal Brasileira garanta a todos o pleno exercício dos direitos culturais, as violações são frequentes de maneira cruel e velada”, nota.
 

A gente quer comida, diversão e arte

De ícones do RAP nacional ao efervescente movimento de saraus literários, a Zona Sul se firmou no mapa da cidade como importante celeiro cultural. E no Extremo Sul, o avanço da cidade sobre os mananciais se reflete nas manifestações artísticas – do graffiti ao teatro. Em 2015, o mapeamento “Cultura ao Extremo”, realizado pelo Periferia em Movimento, identificou ao menos 168 agentes culturais atuando nessa região. A pesquisa também apontou que a falta de recursos financeiros é o principal empecilho à manutenção dos projetos: mais da metade dos coletivos que responderam a pesquisa, por exemplo, não tem fomento público. Relembre aqui.

Confira abaixo o mapa indicando alguns agentes e espaços culturais no Extremo Sul:


Para o gestor e produtor cultural Gil Marçal, com ou sem recursos do Estado, os movimentos e coletivos têm se organizado e garantido na prática o direito à cultura para a população. Porém, isso não tira a responsabilidade do poder público. “As pessoas que não têm recursos para comprar seu direito cultural têm que ter esse direito garantido pelo Estado”, observa Marçal, que coordenou o Programa VAI (política pública de incentivo à autonomia cultural da juventude periférica), dirigiu a área de Cidadania Cultural da SMC e foi chefe da representação regional do Ministério da Cultura (MinC) em São Paulo.“A prioridade é atender quem não tem como comprar a cultura, ou realizar grandes eventos e atender um segmento da sociedade que já tem acesso a esse direito? É a distribuição do orçamento no território que mostra como uma gestão tá pensando suas diretrizes”, observa ele, sintetizando o conceito de cidadania cultural que foi sistematizado na década de 1980 pela filósofa Marilena Chauí.
Para Marçal, o desmonte na cultura ganha força em 2016, quando Michel Temer assume a Presidência da República e, entre seus primeiros atos, extingue o MinC. A mobilização de artistas Brasil afora conseguiu reverter a decisão, mas o recado foi dado: esse não é um assunto de grande importância pra quem está à frente do País desde então. “De alguma forma a política nacional influencia a estadual e a municipal”, explica Gil.
Em São Paulo, isso se reflete principalmente no congelamento de 43,5% no primeiro ano da gestão de João Doria. Entre as ações do ex-prefeito, constam os cortes nas oficinas culturais nos CEUs e outros equipamentos, a diminuição de 30% dos recursos destinados ao Programa VAI e interferência política ao desclassificar cinco grupos selecionados pelo programa, os atrasos de pagamento e abandono aos agentes comunitários de cultura e a demissão em massa de funcionários da SMC. Além disso, o secretário André Sturm ameaçou “quebrar a cara” de um agente cultural da zona leste – considerado estopim para uma ocupação artística de seu gabinete.
Em 2018, com um corte de R$ 82 milhões em seu orçamento total, a SMC aumentou em R$ 18 milhões os recursos para o Theatro Municipal enquanto outros 10 programas tiveram cortes radicais ou simplesmente deixaram de existir, como o Agente Comunitário de Cultura, o Veia e Ventania e os Pontos de Cultura.
Por outro lado, o programa de metas da Prefeitura de São Paulo elaborado pela gestão Doria e herdado por Bruno Covas para o período entre 2017 e 2020 é focado principalmente na realização de eventos culturais. Entre os objetivos, está o aumento em 15% do número de frequentadores dos equipamentos culturais e das bibliotecas municipais, além da elaboração de um modelo de gestão que viabilize parcerias com organizações sociais, semelhante ao que já acontece no Governo do Estado, em que ONGs assumem o controle de museus, Fábricas de Cultura e outros espaços culturais.
Procurada pelo Periferia em Movimento, a SMC não respondeu às solicitações até a publicação dessa reportagem. A coordenação do Centro Cultural Grajaú, único equipamento cultural público no Extremo Sul de São Paulo, estava de férias durante a apuração.

Agentes culturais em marcha após 30 horas de ocupação histórica da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em 2017 (Foto: Wilson Oliveira / Periferia em Movimento)

Das bases ao poder institucional

“Viver na periferia da cidade e ver que em pleno Século 21 a cultura tem seu acesso negado é lamentável e trata-se de um crime conta a Humanidade. Onde não há acesso à cultura, a violência vira um meio”, observa o educador e agente cultural Fernando Ferrari, integrante do Movimento Cultural das Periferias (MCP).

Fruto de uma articulação entre agentes culturais de diferentes pontos da cidade que se fortalece a partir de 2013, o MCP foi responsável por criar, pautar e aprovar a Lei de Fomento à Cultura nas Periferias, que estabelece um programa municipal de incentivo às manifestações culturais nas regiões mais vulneráveis da cidade. Após ser aprovada em 2016, o movimento segue discutindo a descentralização do orçamento municipal, com participação ativa em audiências públicas.

Cria desse processo, Ferrari quer ampliar a discussão sobre o direito à cultura para além dos limites da capital paulista. Por isso, ele é um dos co-candidatos da Bancada Ativista, que reúne nove pessoas oriundas de diferentes movimentos populares para disputar uma única vaga para deputada estadual nas eleições deste ano. “A gente tem discutido como garantir a ampliação das políticas estruturantes para a cultura no Estado”, conta ele. “Vejo como fundamental os coletivos culturais se unirem para discutir os rumos que queremos para nossa categoria, para além dos programas que são políticas de uma gestão”.

MC MM (à frente): ex-participante das formações da Liga do Funk, artista emplacou “Só quer Vrau” como sucesso nas redes e nos bailes


Outro representante da cultura que tenta ingressar na política institucional é o produtor Bruno Ramos, que concorre a deputado federal. “Quando o Estado não trata a cultura como alicerce da educação, e sim como entretenimento, você tem um problema”, diz Bruno, diretor-executivo da Liga do Funk, associação fundada em 2012 com objetivo de formar e profissionalizar artistas do gênero. Milhares de jovens passaram por preparações em música, discotecagem, dança e produção, além de formações sobre machismo, homofobia e racismo. Porém, Bruno reconhece que é preciso mais efetividade para que esses jovens não adotem a linha que o mercado deseja e que geralmente objetifica as mulheres. Entre os nomes de êxito que passaram pela Liga, estão os MCs João (“Baile de Favela”), Kekel (“Namorar pra quê?” e “Amor de Verdade”) e, mais recentemente, MM (“Só quer Vrau”).
Ao entrar no universo da política, Bruno quer seguir na contramão do que está colocado: no ano passado, o Senado Federal debateu um projeto de lei de sugestão popular que qualificava o funk como crime de saúde pública. Engavetado por ser considerado inconstitucional, o projeto pretendia criminalizar o gênero ao associá-lo à venda e consumo de entorpecentes, violência sexual e trabalho infantil em festas ao ar livre, conhecidas como fluxos ou pancadões, porém sem estudos sobre o assunto. “O que o funk sofre hoje, o samba sofreu em 1940 e o hip hop em 1990. Isso sempre acontece com movimentos de pretos”, ressalta Bruno.
Desde fevereiro de 2017, quando o ex-governador Geraldo Alckmin regulamentou uma lei contra o som excessivo de aparelhos automotivos em espaços públicos, a Polícia Militar tem autonomia para acabar com os pancadões no Estado de São Paulo. Para Bruno, isso não resolve a questão, uma vez que a Liga do Funk estima em 800 festas do tipo por semana apenas na capital. “Os fluxos não são um problema do funk, e sim um reflexo da ausência de políticas públicas para a juventude, que tem o funk como gênero que mais o representa”, explica Bruno, para quem o maior problema do jovem periférico é a baixa autoestima.
Num cenário de retrocesso em direitos por um lado e crise econômica do outro, com desemprego, Bruno defende alternativas para a juventude. E o funk é um canal para isso, se o poder público não apenas injetasse dinheiro nas quebradas como também criasse linhas de conhecimento, como processos de formação e desenvolvimento. “A festa é só a cereja do bolo”.

Este conteúdo faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização dos coletivos Alma Preta, Casa no Meio do Mundo, Desenrola E Não Me Enrola, Imargem, Historiorama, Periferia em Movimento e TV Grajaú – SP, com patrocínio da Fundação Tide Setubal. Cerca de 30 reportagens serão publicadas até o final de outubro com assuntos de interesses da população das periferias de São Paulo em ano eleitoral. Acompanhe os sites e as redes sociais dos coletivos e não perca nada!

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