O Brasil chegou ao final do primeiro semestre de 2016 com mais de 720 mil pessoas encarceradas, segundo os dados mais recentes do Ministério da Justiça. Trata-se da terceira maior população carcerária do mundo. Desse total, 59% têm filhos e filhas, o que gera uma estimativa de mais de 1 milhão de crianças e adolescentes com familiares no cárcere, segundo a pesquisadora Sueli Santiago. E isso mexe diretamente com a dinâmica das famílias, como concluiu o primeiro Seminário Nacional sobre Crianças e Adolescentes com Familiares Encarcerados (CAFEs), realizado nos dias 30 de novembro e 01 de dezembro, em São Paulo.
“Crianças e adolescentes com pais encarcerados vivem em maior vulnerabilidade, porque toda rotina da família é alterada. Muitas crianças têm que trabalhar para ajudar no sustento, e muitos adolescentes se envolvem no tráfico”, apontou Sueli, representante do CAFEs. Por outro lado, “vemos juízes e desembargadores encarcerando esses adolescentes por conta do tráfico”.
A partir da experiência do NNAPES (Plataforma Regional pelos Direitos de Crianças e Adolescentes com Pais Encarcerados), presente na América Latina e no Caribe, o Brasil iniciou no primeiro semestre de 2017 uma articulação entre diversas organizações e movimentos, entre eles: Aldeias Infantis SOS Brasil, Projeto Meninos e Meninas de Rua, Amparar, Camará, Cedecas de Sapopemba, Interlagos e Limeira, além de alguns pesquisadores. Como efeito disso, foi feito um levantamento de caráter exploratório com objetivo de levantar hipóteses para investigações futuras.
Para isso, foram entrevistadas 36 crianças e adolescentes entre 04 e 18 anos (18 delas em situação de acolhimento institucional), e provenientes de 27 famílias. Boa parte (22) eram meninas e 70% negras – refletindo o perfil das pessoas encarceradas no Brasil.
O levantamento buscou refletir o acesso desse público a serviços públicos (como educação, saúde, cultura e lazer), assistência social (se recebem algum tipo de benefício governamental), economia e trabalho (como a família do encarcerado se mantém) e o impacto do encarceramento sobre eles e elas.
A pesquisa joga luz a impactos em atividades triviais (as relações afetivas cotidianas entre pais e filhos interrompidas, como brincar ou passear, por exemplo) até a violência do Estado no momento da prisão. Além disso, aponta a “normalidade” do cárcere na vida comunitária: entre os 36 entrevistados, 33 reportaram ter amigos adolescentes em situação de privação de liberdade.
Não bastasse o encarceramento crescente de jovens e adultos, as crianças e adolescentes convivem com a experiência mais drástica da existência que é a banalização da vida, com os assassinatos que deixam a mensagem de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis. Entre as crianças e adolescentes entrevistados, mais da metade (19) teve parentes assassinados: 6 reportaram tias e tios, 5 mencionaram o assassinato da mãe, 3 afirmaram que o irmão/irmã morreu vítima de homicídio e 3 ainda reportaram que primos e primas foram mortos.
Além disso, quando perguntados sobre os espaços em que sentiram discriminação pela condição de familiares de encarcerados, as crianças e adolescentes reportaram a escola como instituição em que essa condição aparece com mais frequência, ao lado da família e da vizinhança.
Debate
Representantes do poder público e da sociedade civil problematizaram a questão em suas falas. Djalma Costa, fundador e secretário-executivo do Cedeca Interlagos, lembra que enquanto o cenário das prisões no Brasil é de violação total de direitos – inclusive aos familiares de detentos -, a Cadeia de Benfica (no Rio de Janeiro) foi reformada para receber políticos presos na operação Lava Jato
Já Nazaré Cupertino, presidenta do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo (Condhepe), chamou atenção para as barreiras para visitação. “Como fortalecer o vínculo familiar, que é soberano, se as meninas passam por revista vexatória nas visitas ao pai ou à mãe em situação de cárcere?”.
Railda Alves, da Amparar (organização que presta orientação a familiares de pessoas encarceradas desde 2004), denunciou as violações de direitos às quais as famílias estão submetidas no sistema prisional. “Teve avó que teve que sair do Extremo Leste pra buscar seu neto porque o diretor do presídio deu duas horas pra buscar essa criança, senão enviaria pra casa abrigo. Além disso, tem assistente social induzindo presas a entregar essas crianças para adoção. Essa criança não cometeu crime nenhum, mas ela já nasce presa, fica seis meses no sistema prisional e a família não recebe assistência”.
E ela continua dizendo que o filho do encarcerado é quem mais sofre nesse processo: “Ele é discriminado na escola por isso. Teve caso de crianças apagarem a memória do pai por ter vergonha dele estar preso. A cadeia ta lotada, mas a violência na periferia continua a mesma”.
Fabiola Gadelha, diretora de programas da Secretaria Nacional de Cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, reconheceu que a política do encarceramento afeta os “excluídos”. “Quem sobrevive ao cárcere tem que vir contar essa história”, disse ela. Porém, a representante do governo de Michel Temer foi criticada por se limitar a um aspecto do encarceramento, sem citar por exemplo o racismo e a falta de política de desencarceramento no país.
“20 anos de congelamento para educação, saúde e assistência vão ter um impacto direto sobre nossas crianças e, principalmente, sobre crianças filhas de encarcerados. Não tem como não discutir o genocídio do povo negro no país e não tem como discutir o impacto sobre as mulheres de encarcerados, que são as que cuidam dessas crianças, quando falamos dessa invisibilidade”, salientou Markinhus, membro fundador do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR).
“Neste momento de golpe do país, temos que criar trincheiras para enfrentar um governo que tira direitos dos brasileiros – imagine dos invisíveis”, destacou a deputada estadual Márcia Lia, da Frente Parlamentar Estadual pelo Direito da Criança e do Adolescente na Assembleia Legislativa de São Paulo. “Temos que caminhar à desconstrução dessa invisibilidade”.
Para a deputada federal Maria do Rosário, que integra a da Frente Parlamentar Mista de Defesa e Promoção de Direitos da Criança e do Adolescente, a garantia de direitos é indivisível, assim como os ataques a esses direitos. “Os efeitos do aprovisionamento independem se é condenado ou provisório. Os efeitos se dão sobre a sociedade, o indivíduo e seus filhos, na formação da identidade desses jovens, como são vistos, recebidos, e sobre quem cuida”, concluiu.
Articulação internacional
A iniciativa brasileira surge a partir de uma articulação latino-americana e caribenha, onde foi criado o NNAPES (Plataforma Regional pelos Direitos de Crianças e Adolescentes com Pais Encarcerados). O argentino Luciano Cadoni, representante da Plataforma, estima em mais de 2 milhões de crianças e adolescentes com familiares encarcerados na América Latina e no Caribe (onde 1,3 milhão de pessoas estão presas)
“Logo depois do encarceramento, geralmente a família tem que se mudar de casa. E isso não acontece no final do ano, pra dar tempo de se organizar. E aí, a criança fica sem vaga na escola, por exemplo”, explicou ele.
Lia Fernandes, da Gurises Unidos do Uruguai, apresentou os resultados de uma oficina de escuta com 250 crianças e adolescentes entre 06 e 18 anos com familiares encarcerados em oito países da América Latina. Os sentimentos relacionados à afetividade que mais apareceram na consulta foram: tristeza e dor; vergonha; alívio (em casos de violência intrafamiliar); e bronca, ira, ódio e vingança (especialmente entre adolescentes) com relação ao Estado.
A luta continua
O primeiro Seminário Nacional sobre Crianças e Adolescentes com Familiares Encarcerados terminou com algumas considerações: o reconhecimento da necessidade do desencarceramento; a urgência de se abordar esse tema; e a revisão dos sistemas judiciário, prisional e de garantia de direitos.
A representante da Secretaria Nacional De Cidadania se comprometeu a levar ao governo federal a proposta de sistematizar a escuta dessas crianças e adolescentes para constituir um panorama da situação no País.
Da mesma forma, a Frente Parlamentar pelos direitos da Criança e do Adolescente do Estado de São Paulo se comprometeu a pautar o tema na Assembleia Legislativa, convocando autoridades para tratar do assunto.
O Condhepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos de SP) pretende iniciar a escuta das crianças e dos adolescentes.
Entre os encaminhamentos, a CAFEs (Articulação Brasileira de Crianças Crianças e Adolescentes com Familiares Encarcerados) deve elaborar e lapidar um resumo do Seminário e elaborar uma carta de recomendações para apresentar às autoridades. Além disso, deve promover versões regionais e estaduais desse seminário no primeiro semestre do ano que vem.