Logo no dia 02 de janeiro, primeiro dia útil de 2017, lá estava o prefeito de São Paulo João Doria Jr. e seus secretários vestidos de garis e empunhando vassouras para simular a limpeza da avenida Nove de Julho, na região central da cidade. A ação que marca o início da nova gestão municipal faz parte do “Cidade Linda”, programa que promete recuperar calçadas, logradouros e monumentos públicos, instalação de lixeiras e manutenção da iluminação pública.
Por outro lado, moradores em situação de rua foram retirados da visão do público e alojados embaixo do viaduto Nove de Julho, escondidos por uma tela, enquanto o prefeito-gestor declarou guerra aos pixadores. Com patrocínio de empresas privadas, Doria quer reformar albergues para abrigar a população de rua e oferecer cursos profissionalizantes e pasta de dente. Para os pixadores, sugere que “mudem de profissão” e virem grafiteiros, demonstrando falta de conhecimento sobre arte urbana.
No último sábado (14), durante o lançamento do Cidade Linda na avenida 23 de Maio, onde se concentra o maior mural de graffiti a céu aberto da América Latina, o próprio Doria apagou algumas das intervenções realizadas.
A atitude despertou a reação de diversos artistas e coletivos, como o Imargem, que publicou uma nota em sua página no Facebook:
Formado por grafiteiros e os chamados agentes marginais da região do Grajaú, no Extremo Sul de São Paulo, o coletivo aborda arte e meio-ambiente com diversas ações – entre elas o Encontro Niggaz, que apenas entre 2004 e 2013 reuniu cerca de 2 mil artistas brasileiros e estrangeiros.
Confira abaixo alguns dos registros:
Por isso, o Periferia em Movimento entrou em contato com o grupo para falar do programa. Afinal, Cidade Linda pra quem?
“Trata-se de um programa que mistura ações que aparentemente são inofensivas, mas que indicam intenções muito mais amplas relacionadas ao espaço público. O que e quem é preciso limpar das ruas? Ou seja, deixar de ser visível? Em realidade, parece que o ‘linda’ indica apenas um trocadilho infeliz com ‘limpa’, e limpeza, assim como beleza, são conceitos socialmente construídos, que expressam valores e moralidades”, observa o coletivo.
Os artistas apontam também para a falsa neutralidade das escolhas da nova gestão e que diz respeito não só ao apagamento de graffitis e pixos (efêmeros por natureza) e sim a uma visão de cidade.
O Imargem lembra que a cena do graffiti em São Paulo não é homogênea, mas o que une cada vertente é justamente o fato de ser uma prática de rua. Isso implica em intensos deslocamentos e um conhecimento particular dos territórios, além de se expor e se dispor a diferentes interações com quem vive na cidade. E isso influencia diretamente no que se pinta.
Não por acaso, o Imargem questiona a proposta de criar um “grafitódromo”. Ao declarar guerra aos pixadores, Doria anunciou a criação de um espaço específico para artistas se expressarem por meio do graffiti de maneira livre. A ideia foi importada do bairro de Wynwood, em Miami (EUA), e deve ser implementada na Mooca, Zona Leste de São Paulo.
“Quando se delimita um espaço, o que acontecerá com quem pinta fora deste espaço? O que este tipo de ação permite em termos de repressão policial na cidade? Porque estas expressões jamais irão se limitar a um espaço controlado e com fins claramente comerciais, trata-se de uma lógica de encarceramento, vigilância e repressão, dentro e fora do ‘grafitódromo’”, questionam.
“E mais: porque se quer importar um modelo alheio à nossa realidade sendo que a nossa cidade já é repleta de murais e espaços que respiram e inspiram estas expressões de rua? Estes gestores conhecem de fato São Paulo?”
O coletivo diz que está buscando dialogar diretamente com o poder público para mostrar a importância desta cena de runa para a identidade e a diversidade cultural de São Paulo, além de fóruns de discussão com outros artistas.
“Ao nosso ver, criar estas dicotomias estanques entre pixo e graffiti e criar critérios construídos por quem nem conhece estas expressões não reflete de fato o que é a cena. Ao contrário, criam um discurso de bem contra o mal, um discurso de limpeza e pureza”, completam.
Em uma entrevista realizada em 2013, Mauro, um dos integrantes do Imargem, disse que faz em média um grafite por dia desde 2002 – 95% deles, não autorizados.
O apagamento das intervenções de rua e a cultura da pixação são abordados em documentários como “Cidade Cinza” e “Pixo”. Confira abaixo: