Foto: Mariana Caires

Queria é poder fazer show aqui todo dia, disse Rico Dalasam pro público que lotou o Galpão Cultural Humbalada na inauguração do Periferia Trans. O LGBT teve que correr pro centro por muitos anos para ser quem é, mas hoje existem espaços como esse em que ele pode se libertar.
Não é à toa que num dia de meio de semana, em plena quarta-feira à noite, mais de 50 pessoas estavam no Galpão Cultural Humbalada, ao lado do Terminal Grajaú da CPTM (Extremo Sul de São Paulo), para discutir como a Teoria Queer se aplica às periferias.

Que porra é essa?

A noite foi de desconstrução do termo Queer, que chegou ao Brasil pelos livros dos acadêmicos e acadêmicas dos Estados Unidos. O debate começou com a fala da professora Mayra Lourenço, que leva a luta pelo fim da desigualdade e estereótipos de gênero dentro e fora das salas de aula, na região do Grajaú.
Na periferia, assim como fora dela, mas com particularidades, a sociedade vive conforme os estereótipos de gênero que ditam, que se enquadram na lógica “binária” do homem e a mulher. E para falar de teoria Queer, é preciso entender que a sociedade delimita algumas atividades diferentes conforme o sexo biológico do ser humano.

No sábado, 2 de abril, Rico Dalasam participou da abertura do Periferia Trans 2016. Foto: Reprodução.

No sábado, 2 de abril, Rico Dalasam participou da abertura do Periferia Trans 2016. Foto: Reprodução.


Se a criança nasce com vagina, o nome será feminino, as brincadeiras serão de ‘casinha’, as roupas ‘de mulher’, e por aí vai. Mas acontece que, nesse jogo, muita gente que não se enquadra é invisibilizada na sociedade. A criança trans, que não se manifesta conforme os padrões de gênero atribuídos ao seu sexo biológico, não tem um banheiro na escola que a acolha.
Na Teoria Queer, Judith Butler mostra que as pessoas constroem a cada dia, através de seu discurso, uma performance social conforme seu gênero, a que chama performatividade. Para Mayra, todos os dias, reiteramos em que somos do nosso gênero por meio da forma como agimos. Esses atos de comprovação do gênero são inconscientes, já impostos pela cultura, nós apenas deixamos levar, mas quando uma pessoa escapa dos estereótipos que ‘cabem’ a ela, sofre opressões, explica.
A pedagogia Queer busca, então, abolir os papeis de gênero e incluir a todos sem estabelecer nenhum padrão, de forma que não se limite experiências. Mas o recorte de gênero sozinho não basta, pois para desconstruí-lo, também é necessário traçar bem os recortes de classe e raça.
Quem conhece a realidade social vê que o que está no papel das pesquisas queer perde seu sentido. Para Ariel Nobre, que integrou o debate e é homem transexual, a chegada do “queer” também trouxe um tipo mercado de consumo e, consequentemente, a orientação sexual está sendo monetizada na sociedade.

“Lésbica bem sucedida não é chamada de sapatão. A orientação sexual está sendo elitizada” – Ariel.

O gênero precisa ser desconstruído: o gay que se enquadra nesse padrão não está inserido no queer.  Eu tenho classe, mas a minha classe não tá na mídia, em nada, se tiramos as classes, ainda permanecem essas diferenças entre quem fala e quem é falado, comenta Ariel. Se deixarmos de falar de forma diferente sobre os trans, as travestis, os gays, as lésbicas, corremos o risco de invisibilizarmos essas pessoas, critica.
Na mesma linha, Gustavo Bonfiglioli, que faz parte do Coletivo A Revolta da Lâmpada, explica que na estratégia de militância é preciso definir as diferenças para protegê-las. O nosso corpo é livre e inclassificável, não se limita a estereótipos de gênero, mas para conseguir direitos práticos é preciso classificar. Tem que ter lei contra homo, lesbo e transfobia, que assegurem a liberdade de todas as identidades, comenta.
É papel do Estado, assim como garantir leis de segurança, garantir a disseminação de informações, e um dos passos é incluir a temática ao conteúdo escolar. “Os professores reproduzem as diferenças de gênero e são culpabilizados por isso”. A professora Mayra conta que a repressão vem de dentro da sala de professores, da direção, do próprio conteúdo dos livros, mas a luta deve ser passo a passo, por um Plano Nacional da Educação que contemple a discussão, pela formação dos professores, sem desanimar.

Faz sentido ser Queer no Grajaú?

Segundo Mayra, em nada muda ser queer dentro ou fora do Grajaú. Ela problematiza a questão dizendo que  a teoria chega na academia, nas pessoas brancas, cis e héteros. Mas o caminho é pegar ela, se armar em alguns espaços de poder para pressionar direitos. Como que, estando à margem, a gente cria formas alternativas de viver, ser, vencer o sistema?
Reconhecer os próprios privilégios é uma etapa da desconstrução. O Tammy Gretchen, depois que percebeu-se trans, fez a cirurgia, tomou hormônio, etc. O que mais pega para o homem trans é a invisibilidade, é dizerem que não temos nada na genitália. Respostas pra tudo a gente não tem, mas políticas públicas a gente deveria ter, indaga Ariel. É importante ter uma referência como ele na mídia, mas não é suficiente, já que ser um trans como Tammy não é nada acessível.
Hormônio masculino, por exemplo, só se consegue com receita médica e é caro, uma cirurgia de mudança de sexo custa 12 mil. Ninguém tem acesso à testosterona, mas em qualquer farmácia tem hormônio feminino. E os palestrantes concordaram que as mudanças só vão acontecer com a luta da militância LGBT, com maior representatividade, e como espelho, veem a luta do movimento negro que tanto tem alcançado nos últimos anos.

Foto: Reprodução.

Foto: Reprodução.


Pra chegar no Queer, primeiro, a gente tinha que desconstruir o capitalismo, diz Gustavo. Não podemos deixar que nossas identidades de gênero se tornem commodities, não é só mostrar na mídia, é possibilitar, participar. A gente precisa ser menos personagem e mais jornalista, ter mais oportunidades de espaços de trabalho. Projetos sobre trans são feitos, legislados, aprovados, criticados por pessoas cis. Aí é aprovado e o tema ainda vira commodity. Não ser commodity não é sair do mercado de trabalho, até porque esse discurso não cabe, não dá pra ficar desempregado por opção, completa.
Ao perguntar para Bruno César, ator da Cia Humbalada de Teatro e idealizador do projeto, sobre a ausência do Estado e de equipamentos que promovam esse tipo de discussão nas periferias, além da presença da moral pré-estabelecida pelo pensamento neocristão praticado por boa parte da igrejas, nota-se que a luta também é do espaço subjetivo.Para ele,

O fato da gente ter uma igreja em cada esquina contribui pra a gente ter essa subjetividade. Ao invés de a gente ter outros equipamentos polarizando e as pessoas acessam esses espaços quando estão no seu tempo livre e não vão a espaços ligados às artes e literatura. Ou é a religião ou a TV… e a gente tá tentando que vá a outros lugares. Por isso a discussão de gênero e sexualidade precisa ir a outros locais além dos que já tem, pra a gente possa ter um lugar onde a pessoa vai”, comenta. E além do espaço simbólico, ter um ponto geográfico também é importante. Para Bruno, “só de ter um ponto de referência na região, como existe na Humbalada e também no Transação, já é uma coisa boa.

E no Periferia Trans, as discussões não param. Ainda tem teatro, debate, show e balada pro público curtir. Quando você entra numa balada é a libertação, pode ser o que quiser aqui, por isso que a gente faz festa aqui!, diz Bruno.
Veja a programação completa em: http://periferiatrans.tumblr.com/post/140597898439

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